domingo, 3 de novembro de 2024

ECOS DO FEUDALISMO: RELAÇÕES DE PODER E TRABALHO NA ERA DIGITAL - Nelsinho Ferreira

 

O que é o sistema feudal? O sistema feudal continua a existir apenas nos livros de história, como marca da Idade Média? Tal sistema sobreviveu ao ponto de cruzar gerações e se instalar nos dias atuais?

O sistema feudal representou uma estrutura de organização política, econômica e social em que a terra se tornava a principal fonte de riqueza. Estabelecido na Europa a partir do século V, o feudalismo começou a declinar no século XV. Com a queda do Império Romano e as invasões dos povos bárbaros, muitos habitantes das cidades, buscando escapar da instabilidade econômica, migraram para o campo. Essa transição foi um fator crucial para o surgimento desse sistema.

A essência do sistema feudal repousava nas relações de vassalagem e suserania. Nesse contexto, um monarca ou nobre que detinha vastas extensões de terras concedia parcelas a senhores feudais em troca de lealdade e da responsabilidade pela sua administração.

Diante disso, os senhores feudais dividiam partes de suas terras entre vassalos. Esses vassalos, por sua vez, podiam subdividir suas terras ainda mais, criando uma hierarquia complexa de obrigações e lealdades.

A Idade Média tem como uma das suas características a mão de obra servil. A população, buscando proteção, trabalho e moradia, se submetia a trabalhar para os senhores feudais, a fim de garantir a sobrevivência. Aos servos eram exigidas enormes cobranças, como a talha, o dízimo e o uso das ferramentas dos senhores.

Na obra "A Civilização do Ocidente Medieval", o historiador Jacques Le Goff define o feudalismo como: “um sistema de organização econômica, social e política baseado nos vínculos de homem a homem, no qual uma classe de guerreiros especializados – os senhores –, subordinados uns aos outros por uma hierarquia de vínculos de dependência, domina uma massa campesina que explora a terra e lhes fornece com que viver”[1].

O sistema feudal é a pequena parte da sociedade detentora da riqueza (terra) e dos meios de proteção (serviços militares) que, utilizando-se do trabalho servil (mão de obra) para a manutenção de sua riqueza, explora o servo, além de subtrair direitos, acesso à riqueza e ascensão de classe, utilizando o medo, a fome e a falta de teto para a manutenção dessa exploração.

Isto posto, o sistema feudal acabou? Há resquícios dele no século XXI. Atualmente, vivendo em uma era digital, onde estamos conectados a todas as partes do globo terrestre, por meio de aplicativos e redes sociais, acompanhamos a vida humana em suas diversas formas e intensidades. Essa nova era alterou nossos comportamentos sociais e individuais, e essa alteração refletiu em vários campos da nossa vida, como, por exemplo, na arte e no trabalho.

Destarte, vamos analisar o campo do trabalho. Nos dias atuais, existem diversas plataformas nas quais podemos exercer nossas atividades laborais, como UBER, 99, entre outras. Contudo, os modos operantes dessas plataformas consistem na figura do dono do aplicativo (donos ou conglomerados de empresas) que disponibiliza uma conta, na qual o trabalhador se cadastra. Dessa forma, todos os ganhos que ele auferir naquela conta são automaticamente divididos com o dono, que recebe parte desse lucro sem participar dos riscos.

Essa dinâmica lembra, de certa forma, as relações do feudalismo, onde uma classe privilegiada, os senhores feudais, se beneficiava do trabalho dos servos sem arcar com os riscos e desafios enfrentados por eles. Nos dias de hoje, os trabalhadores das plataformas digitais muitas vezes se veem em uma situação similar, onde a falta de proteção social e a precarização do trabalho se tornam normais. Embora esses trabalhadores tenham a liberdade de escolher quando e como trabalhar, essa autonomia é muitas vezes ilusória, já que a dependência de algoritmos e do controle exercido pelos donos das plataformas pode criar uma nova forma de subordinação.

Além disso, a concentração de riqueza nas mãos de poucos, algo característico do feudalismo, é um fenômeno observável na era contemporânea. Grandes conglomerados tecnológicos dominam o mercado, acumulando recursos enquanto a maioria dos trabalhadores luta para garantir sua subsistência. A desigualdade econômica que se observa atualmente, onde uma pequena elite detém o controle sobre vastos recursos e oportunidades, ecoa a estrutura hierárquica do passado feudal.

Outro aspecto a ser considerado é a relação de lealdade e dependência. No sistema feudal, os vassalos deviam fidelidade a seus senhores em troca de proteção. Hoje, muitos trabalhadores das plataformas digitais desenvolvem uma forma de lealdade em relação às empresas, muitas vezes motivados por promessas de flexibilidade e ganhos rápidos. No entanto, essa lealdade é frequentemente unilateral, com os trabalhadores sem garantias de direitos ou segurança.

Por fim, o fenômeno do "trabalho por aplicativo" também revela uma nova forma de servidão, onde a vulnerabilidade econômica leva os indivíduos a aceitarem condições desfavoráveis em troca de sustento. A falta de regulação nesse setor levanta questões sobre os direitos dos trabalhadores, semelhante à situação dos servos medievais, que tinham pouco ou nenhum poder sobre suas condições de trabalho.

Assim, ao analisarmos o sistema feudal e suas ressonâncias no século XXI, é evidente que, embora as formas de organização e a natureza do trabalho tenham mudado, certas estruturas de exploração e desigualdade ainda persistem. O desafio contemporâneo reside em reconhecer essas relações e buscar formas de garantir direitos e dignidade aos trabalhadores em um mundo cada vez mais digital e interconectado.

Bibliografia

(s.d.).

LE GOFF, J. (s.d.). A civilização do Ocidente medieval.. Nova Cultural, 1990.

VAROUFAKIS, Yanis. O Minotauro Global: A Crise da Economia e a Luta por uma Nova Ordem Mundial. Tradução de André Telles. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

 

 



[1] LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Tradução de Carlos Alberto G. de Araújo. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1990.

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